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Maria Gil: “Ainda há muitas vozes por ouvir”

08 Mar 2019
By Lígia Gonçalves

É mulher. É cigana. É feminista. Maria Gil é uma soma de partes.

É mulher. É cigana. É feminista. Maria Gil é uma soma de partes. 

 © D.R.  

O feminismo virou Moda. Escreveu-se em mais t-shirts do que conseguimos contar e em infinitas bios do Instagram. Mas, ainda que o feminismo se tenha propagado mais rápido do que as t-shirts da Dior foram copiadas pelas marcas de fast-fashion, o conceito não se tornou necessariamente mais abrangente. Porque continua a ser sobretudo direcionado e conduzido para e por mulheres brancas. Porque continua a ser só feminismo e não feminismo interseccional. Nessa falta de abrangência da palavra, as mulheres ciganas continuaram votadas ao esquecimento e à invisibilidade. Conversámos com Maria Gil, ativista e cigana, sobre o que significa ser mulher e cigana em Portugal. 

Como é que chegou ao ativismo? É curioso porque eu devo dizer que eu sou uma ativista freestyle, porque nunca tive um vínculo com uma instituição, mas fui fazendo ativismo, quase sempre, em parceria. Aliás, comecei a fazer teatro, teatro fórum, teatro do oprimido e teatro comunitário porque percebi que seria uma excelente ferramenta para dar voz à invisibilidade. E essa tornou-se de certa forma uma ferramenta para o ativismo. Isto porquê? Porque em todas as peças, quer seja eu a encenar ou a participar, faço sempre questão de mencionar a causa cigana. Que até então não era uma… Aliás, no nosso teatro nacional não há atores ciganos. 

É ativista e feminista, como é que se emancipa e se passa a definir dessa forma? A necessidade aguça o engenho. E quando nós passamos a ter perceção daquilo que são as nossas grandes dificuldades, acho que não é um ato de ativismo, é um ato de humanidade, não é? Assumirmos uma posição que nos coloque num patamar de dever e de direito; de usufruto do direito; da consciência de que temos direito a ter esse direito. Infelizmente isso [a ausência dessa consciência] acontece muito nas nossas comunidades, porque nós somos várias comunidades, não somos uma comunidade. Mas eu não posso dizer que represento as comunidades no geral, até porque quase ninguém se consegue representar dessa forma. Mas a necessidade torna-se cada vez maior com a tomada de consciência. E é óbvio que se há usufruto de um direito, isso instiga a que haja a capacitação para o cumprimento do dever. Acaba tudo por estar ligado.

"A palavra feminismo é muito recente em Portugal e muito mais recente é para as comunidades ciganas."

class="s1">Uma das frases mais emblemáticas do movimento feminista cigano foi a que escreveu num cartaz, em maio de 2017, numa manifestação no Porto: “As mulheres ciganas existem e resistem”. Que escreveu no momento, quando olhou para o lado e percebeu que não haviam mais mulheres ciganas naquela manifestação. Porque é que não mais mulheres ciganas nesses espaços? É preciso ver primeiro que os feminismos são vários e cada pessoa, cada mulher, cada grupo tem a sua forma de praticar o feminismo. Depois, a palavra feminismo é muito recente em Portugal e muito mais recente é para as comunidades ciganas. Aliás, durante muito tempo eu não a usava porque, sempre que a usava, era mal interpretada e até ameaçada. Mas também porque o empoderamento das mulheres ainda é muito recente e tendencialmente as ciganas dividem-se em três classes: as patetas alegras, que são as que acham que está tudo muito bem e muito bem resolvido; aquelas senhoras que acham que são as certas; e depois as p*tas. E eu, graças a Deus, faço parte das p*tas, por isso, posso ir onde me apetece e até onde me apetece. Isto é brincadeira, claro, mas a verdade é que em algumas das minhas comunidades o facto de eu ter uma filha negra e ter dois divórcios significa que, à partida, quebrei uma das linhas que é transversal a qualquer comunidade. Mas a sociedade em geral não é nem é mais nem menos machista do que as nossas comunidades. Agora o nosso machismo [o cigano] tem uma visibilidade diferente, porque se conhece tão pouco que acaba por se gerar à volta uma certa mitologia.

Enquanto sociedade também nos esquecemos que as mulheres ciganas existem? Sim. Sem dúvida. Claro que sim. Eu naquela manifestação estava sozinha com a minha filha. E ainda que ache que este não é o momento para procurarmos culpados, porque nós idenficamo-los muito bem, mas realmente quem tem a possibilidade de maior movimento [social], muitas vezes, quer primeiro exercer paternalismo, e quer que as mulheres exerçam o feminismo perante uma determinada visão. Mas, o feminismo não pode ter um regulamento rígido. O feminismo tem de se adaptar às realidades, às consciências e aos movimentos que têm maior ou menor celeridade. O das mulheres ciganas tem menor celeridade. No entanto, a resistência e o feminismo nas mulheres ciganas já existe há algum tempo. Ainda que hoje envolva passos que, à partida, já foram ultrapassados pelas mulheres da comunidade geral, mas que para nós são passos importantes como, por exemplo, a capacitação, a escolaridade, e a empregabilidade. Esta última, muitas vezes dificultada pelo racismo institucional e estrutural no nosso país. E também é verdade que há comunidades que não toleram que uma mulher trabalhe fora, que tenha um emprego. Mas acho que há uma necessidade de suporte e de compreensão entre as duas partes. E acho que é isso que não existe. 

As mulheres ciganas também enfrentam uma dupla discriminação. Porque não só se é mulher como se é cigana. Exatamente. Por isso é que eu digo que primeiro sou mulher e depois cigana. 

Sim, reparei que se apresenta sempre da mesma forma. É sempre "mulher e cigana e feminista". Porquê esta construção? Porque primeiro a minha condição é de ser humano, é de mulher. E depois tenho a minha cultura que é o acrescento a essa condição. A minha filha, que tem agora 13 anos, na primária era muito instigada, os [outros] meninos perseguiam-na e ela uma vez perguntou a uma coleguinha se ela sabia fazer contas de somar. E a miúda ficou muito indignada [e respondeu]: “claro, eu não sou burra". E ela disse-lhe: "óptimo, então assim tu vais perceber que eu sou uma conta de somar, em mim nada é subtraído, porque sou uma menina, sou um ser humano, sou cigana”. E isso foi uma forma de inspiração para mim, a partir daí passei a fazer sempre essa construção. Em primeiro lugar sou uma mulher e depois tenho uma cultura que faz de mim uma cigana.

Qual é o principal preconceito que ainda mantemos em relação às mulheres ciganas? Vindo de fora?

Sim. O racismo. O primeiro impacto que sofremos enquanto mulheres ciganas é obviamente o racismo. 

E vindo de dentro?Vindo de dentro é mesmo um medo de perda. Acho que nós ainda confiamos muito pouco, as comunidades ciganas confiam muito pouco na sociedade branca. Porque traz coisas novas, e também há nisto um sentido histórico, porque se relaciona com as perseguições de que fomos alvo. Também há o receio da perda da cultura, da perda das nossas tradições. E eu sou cigana por cultura, mas as tradições, que são moldáveis aos tempos e às condicionantes geográfica, são móveis. E as tradições podem, e em alguns casos devem, ser alteradas, porque se eu sou uma ativista feminista eu luto pelos direitos humanos e faz parte dos direitos humanos mudar e alterar as tradições se tiver de ser. Se a excisão fosse uma das nossas tradições obviamente que eu lutaria pela abolição, da mesma forma que tenho dado o rosto pela importância das mulheres estudarem, das mulheres terem o seu percurso académico. 

"A resistência e o feminismo nas mulheres ciganas já existe há algum tempo. Ainda que hoje envolva passos que, à partida, já foram ultrapassados pelas mulheres da comunidade geral, mas que para nós são passos importantes como, por exemplo, a capacitação, a escolaridade, e a empregabilidade."

A bandeira da escolaridade parece ser comum a todas as ativistas ciganas. É a principal? Neste momento sim. Já o é desde há algum tempo, mas agora estamos num tempo que nos está a oferecer a possibilidade de. E torna-se a bandeira principal precisamente por isso. Pelo sentido de oportunidade. Porque sabemos que há riscos: há o risco da mudança de governos, da mudança de leis. Esta invisibilidade das mulheres ciganas também se relaciona com os governos e desgovernos, porque nós também somos um espelho da sociedade portuguesa. Ou seja, nós somos ciganas num contexto português. E o 25 de abril não trouxe assim tantas mudanças para as mulheres na sociedade geral e muito menos trouxe para as mulheres ciganas.

Há aqui também uma questão latente de racismo institucional. Continuamos a querer ignorar a comunidade cigana? Sim. Só muito recentemente é que aparecemos em espaços noticiosos. E sabemos que, tendencialmente, os media utilizam o lado negativo, o mau exemplo. E isso é estrutural, relaciona-se com as instituições que têm o poder e o dever de fazer essas mudanças. E que não fazem. E também só agora é que os partidos começam a perceber que é importante a nossa consciência política. Porque na verdade somos 60 mil ciganos em Portugal, o que representa muitos votos. Mas só agora é que estão a perceber: "Alto lá, afinal é bom garantirmos a escolaridade porque há ali um bloco possível de votos que nos vão ser úteis". Começa-se já muito devagar a fazer uma tentativa de consciência política. Que eu acho que nos faz falta. A representatividade política é essencial. 

Tal como a representatividade das comunidades em diferentes papéis? Sim, a ideia é aparecermos onde não somos convidados, porque se nós vamos estar à espera que sejamos convidados nunca vamos ser. Então, batemos à porta e entramos. Porque temos esse direito de estar nos lugares.

Reconheceu desde muito cedo as condições que queria mudar por ser mulher e cigana. Que condições eram essas? A questão da escolaridade, o poder de mobilidade, de usufruto do meu tempo, das minhas decisões. E mais tarde, já com 18 anos, a possibilidade de ter emprego, de trabalhar, de fazer escolhas nesse âmbito. 

E ainda há assuntos tabu para as ativistas ciganas? Ai, claro que sim. 

Quais são? Há imensos. Porque mesmo dentro das ativistas há as patetas alegras e as senhoras sérias. As que fazem a divisão das que merecem e das que não merecem. Apesar de eu ser da parte das terceiras senhoras, eu consigo ir onde outras mulheres não vão, portanto eu vou. 

"O primeiro impacto que sofremos enquanto mulheres ciganas é obviamente o racismo."

Aliás, disse numa entrevista que podia denunciar certas situações porque já não tinha medo.Sim. Posso fazê-lo. Não tenho medo. Mas tenho respeito. Por exemplo, não faz sentido eu dizer que não tenho medo e depois estar a facilitar informações que podem por em risco pessoas ou causar mal-estar a outras mulheres. Isso eu respeito, o que é diferente do medo. Mas, sim, estou em posição de falar muito mais livremente. De qualquer forma, elas e eles vão julgar-me, portanto o meu lugar de julgamento já está garantido, ou seja, a minha fatura está paga (risos) e eu suportei muito bem esse preço. Porque também não é fácil ser vista como uma pessoa que não tem moral quando eu sei que a minha moral não está assim tão posta em causa quanto isso (risos). 

E que situações são essas que pode denunciar porque já não tem medo? Certas tradições ciganas. Posso falar, por exemplo, da exigência moral que se faz à mulher cigana, ou seja, há papéis muito distintos [entre homens e mulheres] que são viáveis até um certo ponto. Para mim, deixa de ser viável quando as meninas são impedidas de escolher livremente estudar ou não estudar, trabalhar ou não trabalhar, casar ou não casar. Há uma pressão social, não por tradição, para que se case, para que [as mulheres] só sejam bem vistas quando são casadas e quando casam virgens. As provas de virgindade também são, para mim, um atentado aos direitos da mulher. E também posso dizer isso, muitas não dizem. 

Quando é que deixou de ter medo? Depois de ter pago toda essa fatura.

No Podcast do Género, que a Aline Flor conduz no Público, disse que todos os dias acordava sendo resistente. A que é que resiste? Resisto a muitas coisas. Primeiro porque faço parte de uma comunidade fragilizada, a cigana. E como mulher também resisto. Porque sou mulher num país em que as mulheres ainda têm medo de recorrer à justiça, ainda têm medo de procurar os seus direitos nas instituições. Tudo isso exige resistência. Depois também há a resistência para contornar os insultos quotidianos, que não são diretos, mas que passam por, por exemplo, eu ir a uma loja e ter um sapo à entrada. Tudo isso é uma resistência. 

Alguma vez ponderou desistir? Já, um bocadinho, mas eu sei que não posso. 

E porque é que para si é tão importante ser uma voz? Porque ainda há muitas vozes por ouvir, porque tenho uma filha, tenho filhos, que não quero ver a repetir o que não devem repetir. Mas sobretudo porque ainda há muito poucas vozes. E se me dizem que eu posso ser uma voz, eu não posso virar as costas e dizer que não. Agora, posso é passar palavra para que outras mulheres ganhem voz. E muitas ganham. E muitas também me têm dado voz. Há uma partilha. 

Para terminar, enquanto mulher cigana o que é o que feminismo significa para si? Direito. Direito à vida. Dignidade. Dignidade humana. 

Lígia Gonçalves By Lígia Gonçalves

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