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Do fundo do mar

12 Sep 2019
By Ana Murcho

Lixo atirado para o centro da terra, onde a água deveria respirar livre de agressões humanas. Há quem o ignore, e há quem o recolha e fotografe. Como uma obra de arte. Como chamada de atenção para o que estamos a deitar fora.

Lixo atirado para o centro da terra, onde a água deveria respirar livre de agressões humanas. Há quem o ignore, e há quem o recolha e fotografe. Como uma obra de arte. Como chamada de atenção para o que estamos a deitar fora. 

 

Palhinhas, isqueiros, escovas de dentes, tampas de <em>Smartiesem>, cartuchos de impressoras, pedaços de ursos de peluche, restos do que, em tempos, foi um frigorifico, ou um computador, ou uma máquina de lavar, frascos de champô, redes de pesca, caixas de alumínio... O único sítio onde todas estas coisas se encontram é... no fundo do mar. Impossível? Não, se acreditarmos nas imagens da fotógrafa britânica Mandy Barker, que se dedica a percorrer o globo em busca do lixo que mandamos para o oceano, componente principal da superfície do planeta. O seu trabalho já foi publicado em mais de 40 paísese, em 2017, foi uma das finalistas do Prix Pictet Award SPACE, que reconhece a luta pela sustentabilidade. Agora está nas páginas da Vogue porque é impossível ser esteticamente mais belo e mais responsável.

Por que é que decidiu trabalhar com resíduos oceânicos?

Na minha infância sempre gostei de estar junto ao mar e colecionar objetos naturais, como troncos e conchas. Com o passar dos anos percebi que esses objetos naturais estavam a ser substituídos por detritos produzidos pelo homem, especialmente plástico. Comecei a reparar que a praia tinha cada vez mais compartimentos de frigoríficos, computadores, televisões, etc., e dei por mim a perguntar-me como é que eles lá chegavam. Senti que esse era o tipo de preocupação ambiental que outros também deviam conhecer, e foi isso que primeiro me atraiu para a questão, há mais de dez anos - espalhar o impacto desta experiência a um público mais amplo.

Nas suas fotografias, os objetos parecem ganhar vida. Parece que estamos a ver o fundo do mar. Como é que os fotografa?

Fotografo o plástico de vários tamanhos em fundo preto, no meu estúdio. As peças menores e as partículas minúsculas são espalhadas aleatoriamente - tal como existiriam no fundo do mar. Termino com os objetos maiores e, de seguida, junto todas as camadas, o que dá essa ilusão de profundidade e suspensão, que é como se olhássemos para debaixo do mar.

A série Hong Kong Soup: 1826, por exemplo, apresenta pedaços de plástico recolhidos em mais de 30 praias de Hong Kong. Como é que foi o processo de recolha? Esse processo muda a cada trabalho?

Na minha série anterior, SOUP, fui eu que recuperei todo o plástico, mas para a série Hong Kong Soup: 1826 isso foi mais difícil. [...] Tive a sorte de ter voluntários da organização Plastic Free Seas a ajudar a recolher parte do plástico e a levar-me a algumas das ilhas em pequenas embarcações. A minha série PENALTY, por seu lado, teve uma abordagem diferente, porque consistia em recuperar o único item de plástico de um jogo de futebol. O projeto envolveu a colaboração de membros do público de todo o mundo, depois de pedir via social media para as pessoas apanharem e partilharem bolas de futebol que encontravam na praia. [...] O campeonato do Mundo de futebol de 2014 foi o catalisador para a criação desta série, a fim de despertar consciências durante um grande evento desportivo internacional. O título da série tem um duplo significado - penalty é uma punição por se quebrar uma regra num jogo de futebol, e penalidade é o preço que todos nós pagaremos se não cuidarmos dos nossos oceanos.

 

As suas fotografias têm um lado holográfico, quase mágico. O que é que acha que as pessoas sentem quando olham para elas? Qual é a sua intenção: chocar ou provocar uma reação?

As pessoas vêm coisas diferentes nas minhas imagens, algumas sentem que [elas] são do outro mundo e fazem lembrar-lhes o espaço cósmico, outras vêm os rostos do fundo do mar. O objetivo do meu trabalho é criar uma imagem visualmente estimulante que atraia o espectador e, de seguida, chocá-lo com a legenda e os factos que o trabalho representa. O que pretendo é que essa contradição entre beleza e informação combine para fazer as pessoas questionarem, por exemplo, como é que as suas embalagens de alimentos, as suas escovas de dentes, os seus computadores ou os seus sapatos acabam no meio do oceano e, também, como é que o seu isqueiro de uso único, ou o cartucho da impressora, acabou no estômago de um albatroz.

A sua estética é diferente da maioria dos fotógrafos que também se dedicam a questões ambientais. O que é que a inspira? E como é que descreve o seu trabalho?

O meu trabalho é conceptual e isso acontece porque é muito difícil fotografar, em estilo documentário, a quantidade de plástico que existe no mar. Essa é a razão pela qual coleciono o plástico dos oceanos e trago-o de volta ao estúdio para fazer as imagens. Esteticamente, sou inspirada por muitos artistas e fotógrafos antigos, cada um por diferentes razões. [...] A inspiração para a composição pode vir das coisas que vejo na praia, do formato que assume a linha da costa, de um cardume de peixes ou do padrão dos detritos flutuantes. [...] Mas principalmente inspiro-me em pesquisas científicas e artigos, porque é importante para mim mostrar uma representação verdadeira da questão. O meu trabalho tem de ser preciso, isso é essencial para a sua integridade. Embora a estética seja importante, ela tem mais a ver com a representação dos factos, com [a forma de mostrar] como estamos a afetar o nosso planeta e o ambiente à nossa volta.

Sendo tão apaixonada pelo tema da proteção dos oceanos, e do planeta, sente que é uma ativista que trabalha em fotografia, ou vice-versa?

Sou uma artista fotográfica que nos últimos dez anos se empenhou em fotografar apenas plástico marinho e, ao trabalhar com cientistas, tento consciencializar sobre a crise da poluição plástica nos oceanos, com destaque para o efeito prejudicial na vida marinha e em nós mesmos. Espero que, ao apresentar as minhas imagens de forma acessível, a um público mais amplo, ajude a inspirar mudanças. A fotografia é uma forma de comunicação que tem a capacidade de educar, de informar e aumentar a consciência; ela tem o poder de encorajar as pessoas a agir, de movê-las emocionalmente. [...] Se não acreditasse que o meu trabalho poderia fazer alguma destas coisas, não teria motivos para continuar.

1 year, or indefinite? Corda de nylon - a corda pode ficar enrolada à volta do pescoço ou no bico de animais curiosos, causando a morte à medida que eles crescem e o laço aperta. 

Hong Kong Soup: 1816 - Lotus Garden. Coleção de diferentes tipos de flores artificiais que não existiriam no mesmo periodo de floração se não tivessem sido encontradas no oceano. As flores foram recuperadas em várias de Hong Kong (flores de lótus, folhas e pétalas, peónias, cravos, rosas, azevinhos, samambaias, folhas de mamona e hera).

Soup: Refused. Ingredientes: detritos de plástico marinho afetados pela tentativa de mgastigação e/ou ingestão pelos animais. Inclui pasta de dentes, aditivos, dentes de animais. 

30 years, or indefinite? PVC - os corais são destruídos quando equipamentos de pesca descartados, como macacões, luvas, panelas danificadas ou redes, são arrastadas para o fundo do oceano. Os recifes de coral abrigam muitas espécies, a maioria das quais é afetada.

Hong Kong Soup: 1826 - Lighter. Os isqueiros fazem referência à sociedade descartável de uso único. O panda, emblema nacional da China, representa espécies ameaçadas de extinção e simboliza a mãe natureza, que volta costas à incapacitação em responsabilizar-se pelos seus residuos (isqueiros recuperados em várias praias de Hong Kong).

Artigo originalmente publicado na edição de setembro de 2019 da Vogue Portugal.

 

 

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