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Ghosting? Onde é que eu já vi isso?

26 Jul 2019
By Ana Murcho

O síndrome do abandono inesperado é a tendência dos últimos anos nas não-relações, nas quase-relações, e nas relações — em suma, nas aproximações muito subtis e fracassadas a coisas como o amor, a paixão e o encantamento. Exploramos o mundo do ghosting.

O síndrome do abandono inesperado é a tendência dos últimos anos nas não-relações, nas quase-relações, e nas relações — em suma, nas aproximações muito subtis e fracassadas a coisas como o amor, a paixão e o encantamento. Exploramos o mundo do ghosting.

“Contem-me a vossa melhor história de ghosting, porque acabei de me lembrar daquela vez que mandei uma mensagem a um rapaz com quem estava a sair há três meses, ‘O que é que achas de bowling?’ e nunca mais soube dele.” Em abril do ano passado, uma utilizadora do Twitter de Washington, Estados Unidos, fez este apelo aos seus seguidores — e o pedido rapidamente se tornou viral. E não, Allison Hrabar não é nenhuma celebridade, mas o sentimento de angústia provocado pelo desaparecimento repentino de alguém que julgávamos conhecer é avassalador. 

O feedback teve de tudo. Do mais cómico ao mais sinistro. “Saí com um rapaz, nos dias seguintes trocámos mensagens, e de repente ele ficou calado. Dei a entender que se ele não estivesse interessado, não havia problema. Ele respondeu a dizer não sejas tola, se não estivesse interessado, simplesmente parava de mandar mensagens. Foi a última mensagem que enviou”, escreveu uma cibernauta. “Estava com alguém há mais ou menos cinco meses e ambos tínhamos uma admiração muito saudável e respeitosa pelo Will Smith. Era 2012 e eu disse ‘Men in Black 3 estreia esta semana, pipocas, pago eu’ e até hoje estou à espera de uma resposta”, desabafou outra.

Os homens envolvidos nestas histórias foram raptados por forças alienígenas, só pode. Ou são, eles próprios, forças alienígenas. Nenhum ser humano desaparece assim, pfff, até nunca. Mas não. O ghosting (“modo de acabar uma relação amorosa, que se caracteriza pela forma abrupta e inesperada como a pessoa que pretende terminar o relacionamento o faz, desaparecendo sem explicações e evitando qualquer tipo de comunicação posterior com o parceiro abandonado”, in Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa) não é um ato exclusivo do sexo masculino. E, provavelmente, as pessoas fazem-no desde o início dos tempos. Só que numa era ultra-conectada como a que vivemos, todas as ações, todos os passos, têm um nome de código. 

"Para muitas pessoas, parece ser a maneira mais fácil de terminar um relacionamento. Não obriga a expressar qualquer emoção e não obriga a lidar com as emoções da outra pessoa."

Como tal, passou a existir uma nomenclatura para canalhas. O termo foi adoptado pelo Urban Dictionary em 2006 e o seu uso tornou-se de tal forma banal que o conceituado Merriam-Webster acabou por adicioná-lo em 2017. A praga tornou-se oficial. Desde então, surgiu um novo compêndio das desilusões amorosas que vai do benching (literalmente, esperar sentado, ou quando alguém aparece e desaparece da sua esfera semana sim, semana não, normalmente com desculpas esfarrapadas) ao orbiting (tal como os planetas, orbitar em volta de alguém, em modo toca e foge, sendo que o foge quase sempre prevalece), passando pelo zombieing (quando uma pessoa desaparece da sua vida e depois, muito tempo depois, regressa sem avisar). Aqui fala-se apenas de ghosting, para evitar fazer das tripas coração. 

E se, afinal, o oposto do amor não for o ódio? A sugestão foi feita num debate online e rapidamente começou a ganhar apoiantes. O oposto do amor é a indiferença. Ghosting, para quem não está familiarizado com o termo, é ter alguém de quem se gosta (amigo, namorado, novo companheiro) a desaparecer da sua vida sem qualquer explicação. Nenhum telefonema, nenhuma mensagem, nenhum telegrama cantado, nenhum e-mail, nada. Ghosting é a atualização moderna do mito urbano do homem que foi comprar cigarros a meio da noite e nunca mais voltou. Porque é que as pessoas fazem isso? 

Viramo-nos para a ciência. Jennice Vilhauer é psicóloga, colaboradora regular da Psychology Today e autora do livro Think Forward To Thrive. “Para muitas pessoas, parece ser a maneira mais fácil de terminar um relacionamento. Não obriga a expressar qualquer emoção e não obriga a lidar com as emoções da outra pessoa. Hoje em dia, muitas pessoas não sentem que têm uma obrigação para com alguém se não tiverem um ‘compromisso’ e, como há tantas opções, muitas não assumem um compromisso de exclusividade por muitos meses. Se estiver disposto a ter um relacionamento sexual sem um compromisso de exclusividade, coloca-se na posição de ficar emocionalmente ligado a alguém que não sente obrigação consigo e isso inclui uma falta de sensibilidade às suas emoções e à forma como [eles] terminam o relacionamento.” 

"50% dos daters já foram vítimas de ghosting. Este comportamento está a tornar-se uma prática comum e, como tal, mais pessoas se sentem à vontade para fazer isso a outra pessoa."

As pessoas que desaparecem (ghosters) estão, antes de mais, preocupadas em evitar o seu próprio desconforto emocional e raramente têm noção de como os seus atos magoam o outro. A falta de conexões sociais mútuas para pessoas que se conheceram online também significa que há menos consequências práticas em “desistir de alguém”. É por isso que muitas vítimas de ghosting acabam, mais tarde ou mais cedo, por cometer o mesmo crime... “Um estudo realizado há uns anos indicou que, pelo menos, 50% dos daters já foram vítimas de ghosting. Este comportamento está a tornar-se uma prática comum e, como tal, mais pessoas se sentem à vontade para fazer isso a outra pessoa. Quando alguém de quem realmente gosta desaparece da sua vida subitamente, [isso] é uma experiência emocionalmente traumática que pode levar alguém a encerrar uma parte da abertura emocional no relacionamento seguinte. Quando as pessoas são menos sensíveis emocionalmente e menos vulneráveis umas às outras, o ghosting torna-se mais fácil de fazer.”

Fácil e, supostamente, indolor. Só que não. O ghosting assemelha-se a uma tática de controlo passivo-agressiva, quase como um mind game. “Pode ser, mas não acho que seja por isso que a maioria das pessoas o faça. Grande parte do ghosting acontece porque há pouca ou nenhuma noção sobre como esse comportamento está a afetar a outra pessoa. A completa falta de compreensão e de clareza sobre o que aconteceu quando alguém é vítima de ghosting é o que causa muito do sofrimento. Uma coisa é acabarem [uma relação] consigo, outra é não saber se a pessoa está morta ou num hospital qualquer. Como humanos, contamos com pistas sociais para facilitar as nossas respostas emocionais com os outros. O ghosting priva as pessoas de pistas normais que sinalizam como responder e faz com que alguém se sinta muito desorientado emocionalmente”, lembra Vilhauer. 

Ana, 32 anos, solteira. Últimas experiências no mundo dos relacionamentos semi-amorosos: catastróficas. Motivo: eles afinal não eram homens, eram fantasmas. “Não sei bem se é ghosting ou se é só parvoíce”, atira, entre risos, antes de contar a sua mais recente desventura. É ghosting, garantimos. E se não fosse ghosting, o mundo moderno arranjaria outro palavrão qualquer para caracterizar a malvadez de quem bloqueia a pessoa com quem se encontrou na noite anterior, com reviews (aparentemente) positivas. 

“No início, a história é mais ou menos como todas. Uma pessoa adiciona-te na rede social, começas a seguir de volta, começas a sentir afinidade com as partilhas, sem pudor vai-se mostrando publicamente a validação com o que os olhos veem ou com o que se pensa - like aqui, like ali. Há-de chegar o dia em que chega uma mensagem. Começas a trocar ideias. Começas a trocar muitas ideias. Há empatia. Percebes isso e ficas muito baralhada porque afinal de contas não conheces a pessoa, mas de repente já lhe estás a contar o teu dia, os teus pequenos dramas, a partilhar e partilhar e partilhar. Queres perceber mais. Decidem encontrar-se. Há encontro. E há dúvidas no processo. ‘Será que a empatia existe na realidade?’ A ideia que tenho desta pessoa pode estar a ser criada na minha cabeça. ‘Será que é mesmo como nas fotografias?’ Encontro. Tudo bem, pessoa simpática, bem parecida, boa onda. Algum tempo na conversa. E adeus. Tenho de ir embora. Tudo bem, adeus e beijinhos, vamos falando. Dia seguinte, bloqueada em todo o lado.” Não vamos falando. Esquece tudo o que não te disse. Fim. Este é, repetidamente, o círculo vicioso do (novo) amor em tempos de cólera. 

Muita atenção virtual, pouca conexão real. “Toca e foge, sempre a rejeitar a realidade”, como explica Ana. O que ele queria, supõe, era uma coisa platónica. Como é que se fica depois deste abanão? Sem saco. A meio caminho entre a descrença no sexo oposto e o ódio pelas redes sociais, pela facilidade descartável que conferem às relações. E não, aqui não havia Tinder nem Bumble nem outras aplicações do género. Aqui só houve, por breves instantes, a crença de que no outro lado do ecrã podia estar alguém fixe. Na maior parte das vezes, não está. 

Tal como no caso de Ana, não é preciso existir uma relação longa para se ser vítima de ghosting. Duas pessoas podem estar apenas “a conhecer-se”. E, no entanto, é extremamente doloroso ser deixado assim, subitamente. A rejeição emocional, repentina, não dá pistas de como reagir. Cria um cenário final de ambiguidade. Como devemos processar a nossa dor (independentemente de ser muita ou pouca) se não sabemos realmente o que aconteceu? “A falta de clareza sobre o que aconteceu cria muita angústia emocional. Contudo, para a maioria das pessoas, é a rejeição e a sensação de ser completamente descartável que parece o pior. Pode parecer que o ghoster não pensou o suficiente em si para, no mínimo, tratá-lo com a cortesia e o respeito comuns”, garante Jennice Vilhauer.  Por outras palavras, pode parecer que o ghoster não quis saber. 

Onde é que já ouvi isto antes? Ah, na minha própria vida. Edward. Espero que estejas zen, num prado verde e lindo rodeado de vaquinhas fofas... com síndrome de doença respiratória bovina, a correrem desenfreadas contra ti. Edward, posso usar o teu nome verdadeiro porque não me vais ler, estás do outro lado do mundo, confortável na tua toca feia e escura, como todos os cobardes, e não sabes o que se passa no planeta das pessoas com coração. Ainda me lembro do dia em que nos conhecemos, mas como isso é uma boa memória não a vou trazer para aqui, as pessoas não precisam de saber que parecias um cavalheiro, o verdadeiro gentleman, o homem que abria a porta do carro e também dizia piadas, a medo, envergonhado. 

Fomos amigos durante anos (será que fomos mesmo?), à distância, unidos por filmes que já ninguém vê e músicas que já ninguém ouve. Depois resolveste trazer a tua vida para Lisboa (só aparentemente) e foste-te aproximando de mansinho, como quem não quer a coisa — afinal, eras demasiado tímido. Tão tímido que foram precisos dez meses para confessares o teu imenso amor por mim (só aparentemente). Depois puseste-te num avião em direção aos Estados Unidos e nunca mais te vi, a ti, o homem mais sensível, o mais sincero, o homem mais sensato que já conheci. Talvez o problema tenha sido exatamente esse: muitos “esses” para o mesmo homem. Edward. Obrigada pela mensagem que me mandaste quatro anos depois. Pelo menos sei que estás vivo. Daqui a cinco séculos respondo. 

E depois do adeus, adeus. Será? Um dos danos colaterais mais cruéis do ghosting é ativar a nossa capacidade de auto-sabotagem. Não questionamos só a natureza das nossas relações, mas a nossa capacidade de julgamento. “Como é que caí nisto?” ou “Como é que não me apercebi que ele/ela era assim?” No limite, o ghosting é o uso refinado do tratamento silencioso, uma espécie de crueldade emocional com provas dadas no derrube da auto-estima.

A impotência face a uma situação mal resolvida faz com que tenhamos dificuldade em processar emocionalmente a experiência. Será isto o futuro dos relacionamentos? Estamos condenados a um mundo onde as pessoas se cansam umas das outras mais rapidamente que um refresh, e se recusam a fazer um esforço para travar uma conexão real e duradoura? “Eu penso que as pessoas vão sempre querer conexão. De certa forma, quanto menos temos, mais queremos. Mas muitas pessoas podem não saber como criar uma conexão autêntica com outra. Como há uma perceção de abundância de parceiros com os encontros pela Internet e porque [a proliferação do] ghosting faz com que terminar relações seja relativamente livre de stresse para o ghoster, muitas pessoas preferem seguir em frente em vez de trabalhar num relacionamento que pode criar tensão emocional.Mas é precisamente nesse processo de trabalho que as pessoas se conhecem e conseguem confiar umas nas outras, e é isso que facilita a construção de uma conexão mais profunda.”

Por mais que me custe admitir, acho maravilhoso que se encontre uma justificação mais-ou-menos científica para seres humanos que, de um momento para o outro, desaparecem das nossas vidas como uma assombração, naquela fórmula mesquinha do “Quero muito ir passar o fim de semana contigo, liga-me amanhã para combinarmos”. Só que o número para o qual ligou nunca mais vai estar atribuído... 

“Mas o que é que eu fiz de errado?”, perguntamo-nos até à exaustão. Nada. Os estudiosos garantem que estes seres são pequenos fantasmas que entram e saem das nossas vidas por razões que só as suas almas percebem. Sinto-me mais aliviada. Não menos desapontada, mas aliviada. Pelo menos assim consigo perceber porque é que dois ou três cafajestes sucumbiram na espuma dos dias. Eram apenas fantasmas, desaparecidos sem combate. 

 

Artigo originalmente publicado na edição de julho de 2019 da Vogue Portugal.

Ana Murcho By Ana Murcho

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