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Vamos falar de Educação Sexual

18 Jun 2019
By Joana Moreira

Há 10 anos que a Educação Sexual é obrigatória nas escolas. Uma década depois, o que falta não é informação, mas novas formas de comunicar, de cativar, de ensinar. Não, não é só falar de sexo.

Há 10 anos que a Educação Sexual é obrigatória nas escolas. Uma década depois, o que falta não é informação, mas novas formas de comunicar, de cativar, de ensinar. Não, não é só falar de sexo.

É um tema controverso e que move paixões. A Educação Sexual, apesar de ser obrigatória nas escolas desde 2009, ainda continua aprisionada em formalidades e preconceitos. A ideia de que “falar de sexualidade é falar de sexo” continua a subsistir e, para a sexóloga Vânia Beliz, esta é uma noção “errada e perigosa”. “Por isso é que há tanta oposição à educação sexual nas escolas. Porque se acha que falar de sexualidade é falar exclusivamente de sexo. E é muito mais abrangente do que isso”, conta à Vogue.

O assunto deve partir de casa?

Para a sexóloga, a resposta é um redondo sim. Mas não é preciso ter “a” conversa: “Eu defendo, e é isso que acabo por dizer às famílias no último livro que escrevi, que o momento
 em que nós esperamos um bebé e a forma como nós vamos receber essa criança acaba por começar a fazer esse processo de educar para a sexualidade.” E não se trata apenas de palavras. “A criança não aprende só através da linguagem, a criança aprende muito com o que se passa à sua volta, ou seja, os papéis de género, a maneira como se lida com o afeto e como se lida com as emoções. Ou seja, nós educamos desde sempre.”

Eva Francisco Pinheiro, psicóloga, concorda. “Na família, aquilo que eu noto é que muitas vezes os pais evitam abordar o assunto. Muitas vezes porque também não sabem em que idade é que devem começar a falar sobre o assunto. A verdade é que quando as crianças têm cerca de 4 ou 5 anos, e começam a questionar como se fazem os bebés, é a primeira abordagem que devemos fazer às questões do desenvolvimento sexual”, diz. Depois, a partir dos 10 ou 11 anos, “seria importante os pais começarem
a falar de métodos contracetivos, de doenças sexualmente transmissíveis e da questão dos afetos”. Para a psicóloga, “quando falamos de educação sexual, a escola faz o papel de falar da função fisiológica, mas sexualidade é também a parte dos afetos. E convém, tanto na família como na escola, se fazer esse papel
 de falar da afetividade ligada ao desenvolvimento sexual”.

O que está a ser feito nas escolas

É a lei n.o 60/2009 que estabelece o regime de aplicação da educação sexual em meio escolar. A obrigatoriedade é que o tema seja tratado nos estabelecimentos de ensino básico e secundário. Isto é, a partir do 1º ciclo. A lei aplica-se a todas 
as escolas públicas, bem como aos estabelecimentos da rede privada e cooperativa com contrato de associação. Depois, a lei deixa que seja o Governo a regulamentar e definir as orientações curriculares adequadas para os diferentes ciclos de ensino.

Esta lei não foi, entretanto, revogada e, apesar de o documento referir a importância da “transversalidade da educação sexual nas restantes disciplinas”, hoje a Educação Sexual está confinada ao programa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, um tema, entre muitos, como a igualdade de género, o desenvolvimento sustentável ou a literacia financeira.
 Em março, em resposta ao jornal Público, o Ministério da Educação garantia que esta transferência da matéria para
 esta cadeira “continua a permitir promover uma abordagem transdisciplinar da educação sexual, nomeadamente no ensino secundário”. Todavia, a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, elaborada em 2017, coloca a sexualidade como um dos temas obrigatórios em dois dos três ciclos do ensino básico. Cabe ao professor decidir o que abordar — e como.

A Biologia já não é suficiente

A Educação Sexual visa, entre outros aspetos, educar para a saúde e prevenir comportamentos de risco que possam expor os jovens a infeções sexualmente transmissíveis (IST) ou a situações de gravidez indesejada. E a tendência de lecionar apenas de um ponto de vista biológico é recorrente. Para muitos professores, ignorar a dimensão afetiva e focar as atenções no que é mais da mecânica biológica pode ser uma forma de lidar com o desconforto associado às temáticas da sexualidade. Contudo, o que falta aos jovens não é exatamente a neutralidade da informação pura e dura. Isabel Trabulo é professora do 3º ciclo e secundário. Leciona Biologia e coordena o projeto de saúde no Agrupamento de Escolas de Pedrouços, na 
Maia. “Quanto mais falo com jovens, percebo que os miúdos querem mesmo que lhes fale de sexualidade. O problema é que eles não querem que lhes fale daquilo que eles já sabem. Eles querem falar das experiências. E é o que eu acho que 
está a falhar nas escolas, ouve-se pouco as experiências de que eles falam. E dá-se mais informação”, relata à Vogue.

Trabulo confirma que o grau de conforto do professor incumbido de dar Educação Sexual é determinante. “O 
tempo que cada professor vai dar a determinada sessão [de Educação Sexual] depende, sabe que dentro de sala de aula
 é muito complexo nós percebermos se tudo é dado, ou que tempo é que eu dedico. Porque eu tenho cinco ou seis sessões, distribuídas por várias temáticas, mas se o professor se sente mais confortável, e normalmente sente mais confortável, na parte da saúde sexual e reprodutiva, na questão da prevenção da sexualidade para os riscos, é evidente que é essa a parte que vai ser mais trabalhada. E é aí que os alunos se cansam, porque atravessam muitas vezes desde o segundo ciclo até ao terceiro e até ao secundário sempre a mesma forma de comunicação e quase sempre a mesma temática”, diz.
 O resultado pode ser a omissão completa de determinadas temáticas. “Aquilo que eu vou vendo, e são muitos anos na escola, é que quando os miúdos me chegam, eles dizem sempre ‘oh stora, mas nós nunca falámos disso a não ser consigo’. Isto já com 15, 16, 17 anos”, conta.

Quando começar?
 A questão do pré-escolar


Ana Cristina Fraga é educadora no Agrupamento de Escolas de Frazão, em Paços de Ferreira. Atualmente lida com crianças de
 3 e 4 anos. “São pequeninos, mas com a convivência uns com os outros vão tomando consciência, cada vez mais, do seu corpo. E têm a curiosidade de ver o outro, porque eles partilham a casa
de banho e acabam por tomar conhecimento das diferenças
 do corpo”, assegura, explicando a sua abordagem “não indo à profundidade do tema, mas abordando de leve sem esconder, sem omitir determinadas palavras sobre o corpo”. Para a educadora, não há cá nomes queridinhos para designar o que tem uma designação própria. “Cada órgão tem o seu nome e normalmente eles utilizam aqueles nomes mais fofos e mais pomposos, e eu fujo um bocadinho daí. Quando eu abordo o tema, seja por qualquer das situações, seja pela curiosidade deles ou por minha vontade de querer falar sobre o assunto, uso os termos corretos”, explica.

No entanto, e não existindo qualquer obrigatoriedade na lei
para o que à educação pré-escolar diz respeito, Ana esclarece
 que aborda o tema consoante as turmas. “O meu receio eram muitas vezes os pais, qual seria a opinião dos pais ao falarmos desses temas”, admite. “Para já foi muito bom. Os pais foram muito recetivos, acharam estranho eles chegarem com determinados termos a casa, e depois vieram questionar-me 
sobre o que é que eu andava a falar porque eles tinham usado os diferentes termos. E eu expliquei. Portanto não houve qualquer tipo de problema. Mas temos sempre de ver um bocadinho o ambiente e com quem é que estamos. As turmas, o ambiente familiar... E quando eles são mais velhos. Normalmente, quando eles já têm 5 anos, é quando eu faço essa abordagem.” 


A educadora não esconde que “nem toda a gente está aberta
 a abordar o tema, tentam fugir um bocadinho e passar ao
lado”. Contudo, para Fraga, “faria sentido” a introdução à Educação Sexual mais cedo do que o previsto na lei de 2009, que estabelece que seja só no primeiro ciclo. “Até porque é 
logo no início, na educação pré-escolar, que elas [crianças] começam a construir a sua identidade, a ter conhecimento do 
seu género”, justifica, salientando a necessidade de apresentar
os conteúdos de forma “leve e não indo ao exaustivo”. “Aliás,
 há literatura infantil que faz a abordagem desse tema e
 livros indicados para os alunos do pré-escolar”, remata.


A Associação para o Planeamento da Família (APF) concorda
 que a lei devia abranger também o ensino pré-escolar. Rita
 Barros, diretora executiva da APF, aponta para um possível
 motivo dessa exclusão. “Acho que há uma questão moral, ideológica, do nosso país, também. Já foi muito difícil que conseguíssemos que fosse introduzida no primeiro ciclo. E acho que tem que continuar a ser trabalhado e sensibilizado para
 os nossos políticos e principalmente para os educadores, para quem trabalha no pré-escolar, para o Ministério da Educação e 
o Ministério da Saúde, obviamente. Porque não interessa só as crianças conhecerem o funcionamento biológico e reprodutivo, é também muito importante o reconhecimento do respeito entre as pessoas, pelas diferentes orientações sexuais, do próprio relacionamento afetivo entre os jovens e as crianças. É muito importante isto tudo ser trabalhado desde o inicio. ”
Os preconceitos em torno da sexualidade e a ideologia predominante também são referidos como condicionantes. “Existe [um tabu em torno da sexualidade] e a APF tem muitas vezes sido abordada por alguns grupos da sociedade que não concordam com a Educação Sexual nas escolas. Normalmente são grupos, por razões de ordem ideológica, filosófica ou religiosa, que não partilham desta opinião e acham que a educação sexual nas escolas é uma ameaça moral aos seus filhos e às suas famílias”, conta, esclarecendo que “a APF defende e acha que a educação sexual deve ser em simultâneo um espaço de defesa de valores humanistas consensuais da nossa sociedade e tem de existir um espaço de debate sobre as diferenças morais existentes na esfera da sexualidade”. “Nós temos é de saber informar”, conclui.

A falta de formação
 dos professores


Parece ser consensual que a Educação Sexual ainda se
ja apresenta como um desafio para uma grande fatia dos professores. Muitos são os que se queixam de falta de 
formação, como de resto se prova num artigo científico, publicado em 2015, na Revista Portuguesa de Educação, no 
qual “o pouco apoio do Ministério da Educação e Ciência
 e a falta de formação, de experiência e de à-vontade dos docentes nesta área foram apontados como limitações no processo de implementação da ES” na região do Algarve. 


No entanto, há quem procure soluções. Marta Reis é cocoordenadora da pós-graduação em Educação Sexual, na FMH – Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. O desejo de criar esta formação surgiu de uma “necessidade clara”, conta à Vogue. “Desde o relatório de 2013, da avaliação
 da lei 60 da educação sexual, que os professores solicitavam uma formação específica”, explica, justificando que foi, em parte, esta conclusão que levou à criação da pós-graduação em 2018. No entanto, o que aconteceu a seguir foi contra todas as expectativas. A pós-graduação não preencheu sequer o número mínimo de inscritos. “Não foi para a frente. Está tudo parado. Agora está sem calendário”, lamenta, acrescentando que as pessoas que se inscreveram continuam à espera. Trata-se da única pós-graduação em Educação Sexual no ensino público em todo o País. Há, depois, outras formações, mas em universidades privadas. No entanto, para a académica, não é uma questão monetária. “Falando com colegas da minha área e da área da sexualidade, que fazem workshops gratuitos, percebo que as pessoas também não aparecem”, diz. Para Marta, há um motivo claro: “Acima de tudo, estamos desmotivados. Há uma desmotivação clara e completa na educação sexual. Todos os professores que já se dedicaram à educação sexual não veem o resultado nem o reconhecimento do processo.”

O professor é uma peça‐chave, mas não a única


Não há grandes dúvidas de que o professor é um elemento essencial na transmissão da educação sexual, mas deve ser ele o único? Para a psicóloga Eva Francisco Pinheiro, não. “Não acho que os professores tenham de estar preparados para falar sobre a questão dos afetos”, começa por dizer, tirando o peso da falta de preparação no que à afetividade diz respeito. “Se é para falar de afetos existem profissionais específicos para falar sobre esses temas”, diz.

Em teoria, deveria existir um psicólogo em cada escola. A realidade é bem diferente. “Na prática, isso não acontece. E muitas vezes o psicólogo que lá está, está contratado a part-time. Existe um psicólogo para todo o agrupamento, havendo agrupamentos que ainda não têm psicólogo sequer, ou agrupamentos que
têm um psicólogo que tem constantemente de se deslocar
entre as diferentes escolas do agrupamento, não conseguindo muitas vezes dar o acompanhamento necessário que tem de
ser feito. Estamos às vezes a falar de 2 mil e 500 crianças para
 um único psicólogo. E às vezes há uma série de procedimentos
e protocolos escolares, um trabalho mais administrativo, que o psicólogo acaba por ter de fazer, não conseguindo este grau de proximidade que é preciso ter neste tipo de situações”, descreve.
 A falta de articulação entre psicólogos e educação sexual é, para 
a psicóloga, um problema. “Na minha perspetiva, este desvínculo formal do psicólogo à Educação Sexual não faz qualquer sentido. Que informação sobre Educação Sexual é que o professor de Matemática vai veicular a estes alunos? Muitas vezes o que fazem é transmitir a experiência pessoal, e não é isso que é suposto”, solta.

Números recentes preocupam

Poucos dias antes da data de fecho deste artigo foi apresentado um estudo nacional que revela que mais de um terço dos
 jovens não usou preservativo na última relação sexual. Comportamentos sexuais de risco nos adolescentes abrangeram 5.695 adolescentes, 53,9% dos quais raparigas, com uma média de idades de 15 anos. Divulgado a propósito do 10º Congresso Internacional de Psicologia da Criança e do Adolescente, o estudo mostra ainda que 14,5% dos inquiridos disse ter tido relações sexuais associadas ao consumo de álcool ou drogas. Os autores do estudo apontam como justificações para os resultados alarmantes a redução do número de campanhas de prevenção, a perceção da IST como doença crónica e não como doença que mata, e, ainda, “o desinvestimento na Educação Sexual”.

Rita Barros, da APF, olha para estes números como um “reflexo do estado atual da Educação Sexual nas escolas”. “Neste momento não conseguimos avaliar em que estado é que está a Educação Sexual nas escolas, a não ser nos nossos números. Não conseguimos perceber sequer se todos os agrupamentos estão a ter esta abordagem, o que nós sabemos é que, com todo este panorama de crise financeira e de alteração do modo de funcionamento 
das escolas com esta disciplina [de Cidadania], saíram vários dados estatísticos, o último em 2018, e constatou-se que 38,2% dos jovens não receberam qualquer tipo de formação sobre o VIH no secundário. Estamos a falar de 38% dos jovens do secundário que não receberam informação. E isso preocupa-nos”, constata. Apesar da legislação em vigor, “a maioria dos jovens diz que só teve uma aula de educação sexual no secundário e isto preocupa-nos imenso porque não se está a cumprir a lei
. 60/2009”, reforça.

Rita, tal como outros profissionais, aguarda pelos resultados de um teste-piloto, realizado em 235 escolas, em que se aplicou pela primeira vez a estratégia da disciplina de Educação para a Cidadania, proposta em 2016 e hoje obrigatória. Por enquanto, nada de resultados. “Já deviam ter saído, já”, confirma à Vogue. “Mas é o Ministério que tem de os produzir. Isto foi relativo ao ano letivo 2016/2017, em 2018 era suposto terem saído os resultados...”

Artigo originalmente publicado na edição de maio 2019 da Vogue Portugal.

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