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As palavras são delas: Filipa Martins

03 Apr 2018
By Irina Chitas

Perguntámos a escritoras portuguesas o que é a palavra enquanto catarse. Esta é a história de Filipa Martins.

Perguntámos a escritoras portuguesas o que é a palavra enquanto catarse. Esta é a história de Filipa Martins.

Filipa Martins © Jorge Simão
Filipa Martins © Jorge Simão

O que é que sente quando escreve que não sente em mais nenhuma ocasião?

A escrita é a melhor forma de organizar memórias, o que não quer dizer que se trate inevitavelmente de uma escrita autobiográfica. A memória – e a consciência que daí advém, a consciência de nós próprios são as glórias extraordinárias da Humanidade. A importância da memória na literatura é uma evidência: o herói de ‘Vermelho e Negro’ ascendeu socialmente através de uma memória prodigiosa e muitos são os exemplos do elogio da memória na literatura. É a memória, enquanto sinónimo de conhecimento adquirido até através das células porque existe a memória biológica – que nos permite antecipar o futuro e não apenas recordar o passado.

Jorge Luís Borges também fez o elogio da memória, dizendo apenas “que a literatura está feita de sonhos e os sonhos fazem-se de recordações. Essas recordações podem ser pessoais, podem ser lidas ou, talvez, possam ser herdadas. Mas primeiro chegam as memórias e depois as modificações. A memória é assim também a raiz da criatividade – do sonho de Borges - que – naturalmente – é a origem das artes, entre as quais está a literatura. Por isso, e tendo em conta este encadeamento – memória – criatividade ou sonho e literatura - teremos de assumir que nenhum escritor escreve sobre o que não sabe. Mas é claro que eu não concordo com isto, pelo menos falando por mim. Há uma questão que surge de forma quase inevitável nas entrevistas sobre a publicação de livros que é a componente biográfica das obras: ‘Este livro é – de alguma forma – biográfico?’. Posto de outra forma, o que escreve resulta da sua memória, ou ainda de forma mais lata – ampliando esta dimensão de biografia – este livro resulta do seu conhecimento. Percebo esta questão. Eu também tenho esta obsessão em relação aos autores que admiro. Por exemplo em relação a Bruce Chatwin, um escritor nómada, e as suas desventuras na Patagónica. Sobre ele já se disse que Bruce não contava meias- verdades, contava verdade e meia. Pergunto-me se isto não poderá ser adaptado a qualquer bom escritor, que vá para além da biografia, as modificações dos sonhos que Borges enunciou. Do ponto de vista pessoal, a questão da escrita biográfica sempre me despertou desconforto. Há uma cena de sexo particularmente gráfica num capô de um carro num livro que escrevi. Já me perguntaram por diversas vezes se me baseei numa experiência pessoal para escrever essa passagem. Não foi o caso, costumo dizer. Ás vezes, a tentar ter graça, digo não foi o caso, infelizmente. Mas quando me perguntaram o mesmo uma quinta vez, disse que sim, que se tratava de uma experiência biográfica. Da mesma forma que num outro livro matei um homem e também se tratou de uma experiência biográfica colocada em página. Estava a tentar ser mordaz, como ainda sou jovem desculparam-me.

Mas é extremamente interessante pensarmos que a criatividade que está na base de qualquer criação artística é fruto da memória, pessoal e coletiva, logo fruto da biografia. Se considerarmos que a nossa própria biologia evoluiu tendo em conta eventos sociais: o nosso cérebro não está igual desde a abolição da escravatura ou da igualdade perante a lei (e isto já está provado neurologicamente), qualquer coisa que um escritor escreva é fruto de uma biografia de milhares de milhões de anos e, depois, lá está, vem a sonho e a modificação. Pode parecer estanho, mas o nosso sistema neuronal é mais bondoso agora do que era há 500 anos. Com mais ou menos consciência disso, estamos mais humanos. 

O que é que a levou a começar a escrever?

Acredito que a melhor razão por que se escreve é a melhor razão por que se lê. O meu ponto de partida para a leitura é um problema humano. Uma pergunta. Na adolescência temos muitas questões, crescemos e perdemos – infelizmente – parte dessa capacidade de questionar, não no sentido de pôr em causa, mas de assumir que temos dúvidas. Parece que manifestar questões e dúvidas durante a idade adulta nos menoriza face ao contexto, toda a sociedade valoriza os convictos. Eu encontrei e encontro muitas respostas na literatura, só não digo todas para não parecer

demasiado determinista. Nenhum psicólogo ou neurologista explicou-me melhor do que García Marquez o que é a solidão; nenhum advogado, jurista, juiz conseguiu fazer-me compreender como Kafka ou Camus a invencibilidade do sistema perante a pequenez do indivíduo; nenhum jornal ou telejornal me alertou para a cegueira moderna como Saramago. Não se conhece nenhum escritor que tenho escrito sobre a morte, estando morto. Mas pergunto-me quantas vezes teve de morrer Eugénio de Andrade para escrever: “Neste país/onde se morre de coração inacabado/deixarei apenas rês ou quatro sílabas/de cal viva junto à água”.

Voltei há pouco tempo às memórias de Raul Brandão, reeditadas agora por causa do aniversário dos 150 anos do nascimento do autor. Brandão é romântico no sentimento e realista na inteligência – isto poderá tender para o pleonasmo, mas não é comum encontrar intelectuais que tenham estas duas dimensões. Ele diz no prólogo de uma das edições, das primeiras, “há em mim várias camadas de mortos, não sei até que profundidade, às vezes sou eu que os convoco outras vezes são eles a mim”. Se pensarmos nestes mortos como memórias – que é uma forma pouco esperançada de olhar para a nossa biografia -, percebemos que qualquer escritor também é habitado da mesma forma, o que torna a escrita uma invocação de espíritos, quase uma sessão espírita. É assim que acontece: parte-se para a escrita para ganhar consciência das nossas assombrações. Para ter consciência de nós, da forma como António Damásio garante que o ser humano deverá ter consciência de si. Para ganharmos braços e pernas e pescoço e cabeça. Como se a escrita nos demarcasse as fronteiras do nosso corpo. 

Qual é a sua opinião sobre o mito do artista atormentado? Acha que há uma ligação direta entre um autor e um certo sentimento de melancolia?

Atormentar significa (também) importunar. Um escritor ou um artista não pode estar num momento de pacificação interior quando se sente impelido para a criação, ainda que vivenciando um período de paz. Tem de haver movimento interior, agitação, algo que o importuna. Não confundir com melancolia, ou tristeza ou até mortificação. O atormento próprio do criador não tem um juízo emocional luminoso ou sombrio atrelado, há antes uma pulsão – um atormento – criador indispensável ao processo de criação.

Considera a escrita como uma catarse, como uma forma de descodificar as emoções - e, talvez, até de cura interior?

A escrita surge para o autor enquanto consciência de si, enquanto forma de ganhar alteridade em relação a ele próprio e às suas memórias, às suas assombrações. Não me parece um abuso dizer que se trata de um processo terapêutico. A consciência a tocar na consciência, como a nossa mão direita toca na nossa mão esquerda. Como no conto de Borges O Outro, quando ele se encontra com ele mesmo mais velho. Seremos humanos completos neste processo?, pergunto, mais humanos, certamente. Começamos por escrever sobre o que não sabemos para acabarmos por saber sobre o que escrevemos.  Há quem defenda que a memória serve mais à humanidade do que ao ser humano. Cingimo-nos a um repositório de memórias? Podemos perguntar E essas fazem-nos avançar ou atrasam-nos. Ligam-se com fios incorpóreos entre si, presas a nós como balões de hélio. Conheço o cheiro a humidade e ferrugem das câmaras fúnebres de Ayutthaya e posso compará-lo ao cheiro das fardas do meu pai quando chegava da oficina, ao das pernas das cadeiras da escola primária quando o suor das mãos ali seguras lhes extraia o odor. As memórias ligam-se umas às outras por caminhos insondáveis.

Voltando a Raul Brandão, o autor descreveu com brilhantismo o período tumultuoso do final da monarquia e início da Primeira República. Houve uma passagem que me impressionou particularmente: ele descreve a loucura da rainha Maria Pia de Saboia, mãe de Dom Carlos I e avó de Dom Manuel, que morreu pouco tempo depois do regicídio. A senhora passava os dias, no Palácio da Ajuda, a regar um tapete com flores, aguardando que as flores tecidas naquele tapete florescessem.

Esta é uma imagem profundamente triste. Olho para este episódio como uma metáfora da forma como, por vezes, a memória – que costuma ser associada a conhecimento, à capacidade de projetar o futuro - nos paralisa e nos leva ao erro. O exemplo mais clássico de memória preditiva é procurarmos coisas às quais associamos situações agradáveis e rejeitarmos situações que nos remetem para momentos de dor. Borges – e volto a Borges – disse que até um anúncio a cigarros nos poderá enlouquecer se não o soubermos esquecer.

São eventos que condicionam a nossa capacidade de decisão de uma forma profunda, quase ou mesmo paralisante. Não se trata apenas de ter um desgosto de amor, ou terminar uma relação num determinado restaurante e não querer lá voltar porque o espaço nos causa dor; falo de memórias mais complexas, traumáticas, que nos fazem regar um tapete de flores, sabendo que nada cresce a partir de memórias moribundas.

Que impacto pensa que a sua escrita tem em quem a lê?

Não faz sentido tentarmos antecipar o impacto daquilo que escrevemos. São os leitores que nos dizem que livro escrevemos. A título de exemplo, com o ‘Na Memória dos Rouxinóis’ isto tem acontecido quase em formato de epifania. Basta olhar para a capa do livro para perceber que, por vezes, um autor dedica trezentas páginas a um conceito que alguém consegue traduzir em apenas uma imagem. O ‘Na Memória dos Rouxinóis’ valoriza a ideia de esquecimento para avançar, esquecer para decidir de forma acertada. Na capa, vemos um chapéu de chuva abandonado e ao contrário, logo inútil. Este chapéu de chuva representa as memórias inúteis que guardamos e que, tal como o chapéu, devem tender para desaparecer.

Explorámos a escrita enquanto catarse no artigo Afloração da Alma, publicado na Vogue Portugal de abril, já nas bancas. 

Irina Chitas By Irina Chitas

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