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Em Prata que é uma Arte

31 Mar 2020
By Nuno Miguel Dias

Que os olhos também comem já todos sabemos. Também sabemos que esta é uma expressão antiquíssima. Então porque não colocámos a porventura óbvia hipótese de ser tão ancestral quanto a arte de empratar? É que, visto deste prisma, cai a teoria do "Oh, isso são tudo modernices". A aparência da composição de um prato é, desde sempre, um dos pilares que sustenta a restauração. Pelo menos, a que apetece comer. Só de ver.

Que os olhos também comem já todos sabemos. Também sabemos que esta é uma expressão antiquíssima. Então porque não colocámos a porventura óbvia hipótese de ser tão ancestral quanto a arte de empratar? É que, visto deste prisma, cai a teoria do "Oh, isso são tudo modernices". A aparência da composição de um prato é, desde sempre, um dos pilares que sustenta a restauração. Pelo menos, a que apetece comer. Só de ver.

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Still life, de Georg Flegel (1566-1638), óleo sobre madeira, 22x28 cm. Fotografia: DEA/G. Dagil Orti/ Getty Images
Still life, de Georg Flegel (1566-1638), óleo sobre madeira, 22x28 cm. Fotografia: DEA/G. Dagil Orti/ Getty Images

Zé Dias começou a trabalhar aos 12 anos como copeiro num navio de cruzeiro. A única fotografia que lhe conheço sem bigode é aquela que lhe tiraram, num dos poucos dias de folga, à secretária do camarote do pai, espaçosos aposentos de despenseiro, a redigir uma carta de saudades para a sua mãe (a minha avó) e irmãs (as minhas tias, pois claro). A melhor parte do itinerário do Príncipe Perfeito, esse "paquete" que era um verdadeiro gigante dos mares e, logo, orgulho nacional, contava-me ele com aquele brilho nos olhos que assoma quando nos recordamos de quando éramos meninos, era aportar em Cape Town e correr até à loja da Cadbury's, um lugar mágico onde os chocolates tinham passas e avelãs e casca de laranja e coisas ainda mais inimagináveis do que tentarmos hoje regredir a um tempo em que Portugal tinha muito pouco.

Não ali, em África. "Lourenço Marques continua a ser o lugar mais bonito que eu já vi", confessava já nos seus 60, marinheiro feito, meio mundo na bagagem da memória, algumas mazelas de tanto trabalho e aquela necessidade quase diária de "ir ver o mar", fosse à Caparica, ali a dois passos, ou à Milfontes da sua meninice. Para se tornar despenseiro (responsável pelo aprovisionamento do navio em termos alimentares), cargo que assumiu o resto da vida laboral, tirou o curso de hotelaria. O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Quase nada. A não ser a paixão que nunca mais o deixou, aplicada a frigideiras, panelas, sertãs e panelinhas. Lá em casa, a minha mãe tinha o condão, o meu pai a arte. Era o molheiro de serviço, o crítico e o empratador, o fim da linha de uma criativa cozinha para apenas quatro clientes habituais, mas exigentes. Habituei-me mal, portanto.

"Deus me perdoe, mas isto parece o que lá na terra se deitava no masseirão para os porcos. Vou pedir um bitoque."

Os primeiros tempos num navio de cruzeiro, onde o brio era obrigatório, os olhos habituados a outras paragens e o less is more que lhe vinha do âmago alentejano (umas ervinhas aqui, dispostas assim sobre uns sumarentos nacos de borrego assado no forno) casavam na perfeição com a sapiência da minha mãe no que toca a tempos de cozedura e pontos de caramelo. Chegavam-nos à mesa uns belíssimos pratos (que ainda hoje existem) onde a comida era depositada tão ordeiramente quanto se comia, previamente, com os olhos. E nariz, também. Um dia, ouvi do meu pai a coisa mais ofensiva de sempre, tão díspar da sua personalidade, só que estava relacionada com aquilo que o apaixonava. Felizmente, foi dita em surdina, num restaurante. O empregado traz-nos Rancho Beirão. Ele fita a mistura de grão-de-bico, couves, massa cotovelinhos, cenoura e carne de porco. Franze o sobrolho, depois sorri e declara: "Deus me perdoe, mas isto parece o que lá na terra se deitava no masseirão para os porcos. Vou pedir um bitoque". Encantador, Zé Dias. Encantador.

Sim, as nossas omeletes nunca ficam iguais às que vemos nos programas de culinária, o carrê de borrego nunca se queda tão suculento como o da foto da revista da Bimby e nem o aveludado de abóbora aguenta os croutons à superfície como naquele spot publicitário. É uma luta inglória. Muitos foram os que pereceram nesse afã, abandonando para sempre o fogão lá de casa e todos os utensílios que compraram com tanto entusiasmo, entregando-se para sempre aos despiciendos pratos do dia do snack-bar lá da rua, bacalhau com grão à segunda, pernas de frango no forno à terça, bacalhau à brás à quarta, vitela estufada à quinta e arroz de pato à sexta, todas as santas semanas.

Mas, pior do que isso, muito pior, oh inclemência, oh ignomínia, oh vã esperança, é sabermos que até temos algum jeito para a cozinha, que conhecemos os truques mais eficazes para um Bacalhau à Gomes de Sá perfeito, o tempo exacto do salmonete na grelha, o segredo para um polvo tenro mas não mole e, quando chega a hora de empratar e fazer um brilharete naquele jantar lá em casa, é a queda no precipício. Temos ralador para o queijo pecorino (parmigiano é para meninos), pinça para que nenhum espargo fira de transversalidade o paralelismo da composição e até uns dedos afilados para conseguir espetar aquela mínima folha de salsa no topo do risotto. Mas depois afastamos o olhar e... desastre!

É por isso que a velha técnica de deixar os convivas com uma garrafa de branco monovarietal Bical da Bairrada, que nos abre um apetite de Perca do Nilo, sem qualquer entrada, resulta sempre. Famintos, à chegada do prato à mesa os convivas dão uma primeira garfada de forma tão urgente que ninguém sequer se lembrará de fazer uma story para o Instagram. Graças não a Deus mas ao engenho inequívoco do cozinheiro, tudo acaba por correr bem. À excepção do empratamento, essa arte para poucos.

Os estudos comprovam

A fiabilíssima Universidade de Oxford fez um estudo no qual comprova, por A (30 homens) mais B (30 mulheres), que um prato apresentado artisticamente sabe de facto melhor. O prato era uma salada, o que só por si é de dificílima apresentação. Servida de três formas distintas: ora replicando uma famosa pintura, ora na sua forma comum (tossed salad, que poderíamos traduzir como "naquela malga de onde todos tiram para o prato"), ora de uma forma mais "arrumada", com cada um dos elementos (ingredientes) separado no prato.Pediu-se então que os sujeitos da experiência avaliassem, de 1 a 10, a "salinidade" e a "doçura". Aqui, todas elas receberam pontuações semelhantes. Mas quando indagados acerca do "sabor", a salada "arrumada" recebeu, no geral, a melhor pontuação. Melhor ainda, todos os sujeitos concordaram que esta versão era aquela pela qual pagariam mais, muito embora lhes tivesse sido revelado que os ingredientes eram absolutamente os mesmos, servidos nas rigorosamente iguais quantidades. De notar ser claramente óbvio que toda a gente conclui que este tipo de preparação requer um cuidado maior e, como tal, há valor acrescentado. 

Nas escolas de hotelaria, a tendência natural é a de que os novos alunos procurem que os seus pratos tenham tão boa aparência como sabor. Como se esta nova vaga de chefs soubesse que cada cliente é um potencial instagrammer com mais de mil likes por cada foto. Para quem quer fazer um brilharete, temos algumas dicas. Atentai: sendo que a prioridade num prato é encontrar o equilíbrio perfeito entre sabor, textura e estímulo, é melhor ter em conta alguns dos princípios básicos da apresentação de um prato. Ponto número um, imaginar o prato como um relógio. Já está? Ok. Agora é dividi-lo em três secções: o espaço entre as 0h e as 3h e as 9h e as 12h. A maior secção é, assim, a que está entre as 3h e as 9h. É aí que ficará a proteína principal, seja carne ou peixe. Arroz, batatas, ou quaisquer hidratos ficam no espaço entre as 9h e as 12h e os nobilíssimos vegetais quedar-se-ão entre as 0h e as 3h.

Porquê? Supostamente, é assim que o nosso cérebro reconhece o devido valor ascético daquilo que, em breve, irá comer. Há, claro, variações artísticas que grandes chefes têm como suas interpretações, mas isso levar-nos-ia mais três edições subordinadas a este tema. Os detalhes, como o de não deixar muito espaço vazio (deve escolher-se o tamanho perfeito do prato para a quantidade a servir), a escolha de produtos sazonais para que o mesmo se torne mais festivo, o contraste das cores entre os vários elementos e o equilíbrio como um todo (nenhuma secção deverá "pesar" mais que a outra em termos visuais) também são fatores importantíssimos. Havendo molho ou caldo da proteína principal, este deverá ser espalhado pelo prato em forma de gotas desiguais. As formas também são tão importantes porquanto deverá procurar-se, sempre que possível, emprestar alguma "altura" ao prato que contraste com a costumeira e enfadonha horizontalidade.

"Ninguém escolhe um restaurante na net se a apresentação dos seus pratos não for minimamente apelativa."

No que toca aos estabelecimentos de restauração da nossa praça, e para quem os visitava pela primeira vez, antes, era a completa incógnita. Ou isso ou aquelas saloiíssimas fotos dos pratos no menu. Ou pior, expostas por traz do balcão, no cimo das prateleiras das bebidas, retroiluminadas e descoloradas por via dessa mesma luz fluorescente. Entretanto, criaram-se as redes sociais e nunca mais se descansou.

Um estabelecimento de restauração pode ter as mais apelativas fotos no seu website oficial, pagas a peso de ouro ao melhor food stylist e fotógrafo de gastronomia. Mas tem de contar com o facto de, hoje em dia, toda a gente achar que é fotógrafa, só pelo facto de ter um telemóvel e alguns filtros no Instagram. E são precisamente esses que publicam fotos a rodos nos Zomatos e nos Tripadvisors. Ninguém escolhe um restaurante na net se a apresentação dos seus pratos não for minimamente apelativa. Ou seja, estamos nos tempos em que o empratamento dos chefs tem de ser tão exímio que é anti-instagrammer de flash ligado. É um trabalho inglório, moroso, duro e, convenhamos, desanimador. Tenho a certeza de que todos os que estão a ler isto têm lá na repartição um Zé Carlos qualquer que adquiriu o novíssimo Huawei topo de gama com lente Leica e que fotografa tudo o que mexe, conseguindo a inacreditável proeza de não tirar uma só foto de jeito. Sim, é esse mesmo. Não o convidem para jantar. Obrigado.

Não se enganem. Na mais Alta Cozinha, o sucesso de um determinado prato depende tanto do seu sabor como da sua apresentação. A arte de um chefe reside tanto na sua capacidade de elaborar uma criação que é um verdadeiro fogo de artifício para o palato como na aptidão para o transportar, na perfeição, do recipiente onde foi confecionado para o prato que irá para a mesa. Não são poucos os que não vingam por falhar num dos passos. Imagine-se uma sala onde tudo está espalhado num inacreditável caos. Alguém se sentirá tentado a sentar-se no sofá? Agora concebam-na arrumada. São os mesmos elementos, mas ordeiramente dispostos. Não soa a algo mais confortável?

As leis do empratamento

No empratamento, existem leis que são invioláveis. Muitas vezes, tão óbvias como ninguém imagina que, numa cozinha, sejam mandamentos. A limpeza dos pratos, por exemplo... Uma simples mancha pode gerar o caos lá, na cozinha que nos é inacessível e, por isso mesmo, ninguém imagina o quão exigente é manter um ambiente de trabalho ordeiro. Depois, há a questão dos timings... Quantos de vocês consideram que, num prato de três elementos, preparado por três diferentes pessoas em três estações de preparação distintas, as coisas têm de estar todas prontas ao mesmo tempo por forma a chegarem com a mesma temperatura à mesa? E o equilíbrio entre a variedade de ingredientes e o seu contraste? De como as texturas combinam?Para nós, comuns mortais que ficamos na sala de refeições à espera do pedido, tudo parece simples.

Transposta aquela porta basculante, o mundo é outro. E espelha uma tendência tão antiga como a nossa civilização. Os romanos, por exemplo, aplicavam todo o seu cuidado decorativo na sala de refeições (triclinium). Mosaicos e murais, esculturas e mobiliário nobre serviam de cenário a banquetes festivos onde cada um dos três pratos (entrada, prato principal e sobremesa), eram trazidos até junto dos convivas ao som de trompetas. Há, inclusivamente, relatos de episódios em que o imperador Cláudio deitava flocos de folha de ouro sobre ervilhas. Mas foi na Europa Medieval que os reis começaram a contratar artistas para que criassem complicadas esculturas a partir dos alimentos que iriam ser consumidos no banquete, por forma a encantarem os convidados.Não raras eram as empadas e os bolos que libertavam pássaros ao primeiro corte. Contemporaneamente, a tendência é suprimir o fosso entre ricos e pobres no que toca ao design da comida. Hoje pode consumir-se um hambúrguer cuidadosamente empratado num estabelecimento de cinco estrelas, assim como há produtos exóticos, empratados com arte, em restaurantes de bairro. A Alta Cozinha francesa foi a responsável pela ruptura com a ostentação e pelo seguimento da linha less is more que hoje, pode dizer-se, é transversal. 

As Bento Boxes

Como curiosidade, chamamos a atenção para um fenómeno que parece ter transposto já as fronteiras do Japão, onde foi inventado (tinha de ser, certo?). As Bento Boxes (ou “caixas” Bento) são um fenómeno nipónico que, não seguindo nenhuma lei convencionada no empratamento contemporâneo, acabou por criar uma tendência. Não passam de vulgos tupperwares (passo a publicidade) ou “tápáruéres”, como diziam as nossas avós, e alguns colegas de trabalho ainda hoje) ou, como agora se convencionou denominá-las, lancheiras ou marmitas. Aqui, usaram-se no advento fabril do século XX (eram de alumínio com a tampa rosa) e, com o surgimento do novo-riquismo, caíram em desuso. Desde a crise de 2011, contudo, os “marmiteiros” voltaram em força e hoje já passam modelos nos transportes públicos, com padrões lindíssimos e alças néglige. Só que o que está lá dentro é que conta. Pelo menos, para os japoneses.

 

Tradicionalmente, as Bento Boxes têm arroz, carne (ou peixe) e vegetais. Mas o cuidado com que são dispostos no interior da caixa é impressionante. Hoje, é mais do que isso. Preocupadas com a falta de qualidade dos produtos usados na confecção das cantinas escolares, as mãezinhas japonesas procuram que os seus filhos comam de forma mais saudável e nutritiva. Para os encorajar, aproveitam para demonstrar todo o seu amor e dedicação em esculturas geniais. O arroz é um panda, ao que ajuda as formas recortadas de nori (alga seca) ou outro animal “fofinho” qualquer, que pode ter bracinhos de cenouras ou perninhas de aipo. A este tipo muito particular de Bentos deu-se o nome de “Kyaraben” e são já uma tendência mundial de pais em cuidados com a alimentação dos seus rebentos. Seguem a tradição antiquíssima do empratamento japonês, que tem o seu epítome nos Kaiseki (refeições de alta cozinha com 14 pratos cuidadosamente empratados) servidas em pequenos estabelecimentos de Quioto e com a presença de geishas.

Claro que tudo isto é relativíssimo em Portugal. Pelo menos enquanto nos sentirmos tentados a optar, de entre tantos pratos mais ou menos apetecíveis no menu, por uma alheira com um ovo estrelado por cima e batatas fritas em volta. Assim não vamos lá, meus amigos.

Artigo originalmente publicado na edição de março de 2020 da Vogue Portugal.

Nuno Miguel Dias By Nuno Miguel Dias

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