Inspiring Women  

Anna Neistat: "não gosto que os vilões vençam"

25 Oct 2017
By Mónica Silva

Estivemos à conversa com a diretora de investigação da Amnistia Internacional.

De papel e caneta na mão, Anna Neistat segue em missões para países que vivem profundas crises de direitos humanos. É um das protagonistas do documentário E-team, que mostra um pouco o trabalho da equipa de investigação da Human Rights Watch nas zonas de conflito.

Neistat tenta equilibrar a sua carreira como ativista que corre riscos, enfrenta regimes políticos e presencia tragédias, com a sua vida pessoal como mãe e civil. Atualmente, é diretora de investigação na Amnistia Internacional e esteve em Portugal para a apresentação do documentário no festival de filmes de direitos humanos Mostra-me.

Está em Portugal para apresentar o documentário E-Team, num país onde estas situações não acontecem. O quão importante é mostrar ao mundo em geral e a Portugal em particular os acontecimentos retratados neste filme?

O documentário claro que se foca em situações específicas na Síria e na Líbia, que são importantes não só em Portugal mas em qualquer parte do mundo para que as pessoas ganhem consciência e que tomem alguma ação em relação a isso. Mas mais importante, acho que o documentário mostra o trabalho dos defensores dos direitos humanos, e é interessante as pessoas verem o que está nos bastidores daquilo que fazemos. Não só em Portugal, mas em vários países, podem ler algo dito pela Human Rights Watch sobre os crimes cometidos na Síria e não perceberem como é que se chega a estas conclusões. O que o documentário faz bem é mostrar o trabalho, frustração, horas e riscos que vieram com estas determinações.

Como é que as pessoas nesses países a recebem? Mostram-se contentes ou sente que tentam manter uma certa distância? Como é a sua primeira abordagem?

Até hoje consigo ficar surpreendida pela forma como as pessoas conseguem ser tão acolhedoras. Nós não somos uma organização humanitária, mas sim de direitos humanos e há pouco que possamos fazer no que toca a bens materiais. Mas de uma forma surpreendente, isso não é importante, porque rapidamente percebem o que fazemos e querem falar connosco, não porque uma conversa faz uma grande diferença nas suas vidas, mas porque percebem o contributo que podemos dar em trazer justiça para eles e outras vítimas. Tenho memórias de ir a sítios em que as pessoas não questionaram o que é que eu estava ali a fazer, mas ficaram curiosas pelo facto de eu viajar de tão longe só para ouvir as suas histórias. É algo que lhes dá poder, porque, com as suas palavras, emoções e lágrimas, podem sair do estado de vítimas para serem agentes que podem mudar o mundo.

Ao longo do documentário, há cenas em que a Anna está a ouvir relatos muito tristes, como o de uma mãe que perdeu os seus filhos, por exemplo, e nas cenas seguintes já está na sua casa, num mundo mais privilegiado. Como é voltar para casa depois das experiências que vive nas suas missões?

Estou ciente das diferenças entre a minha vida e a deles. Mas eu escolho ir para estes sítios porque tenho uma causa em que acredito. Ouvir as coisas que eu oiço coloca a nossa vida numa diferente perspetiva, mas não há muito que se possa fazer, a única forma de lidar é reconhecer isso mesmo. E, na verdade, estas pessoas ficam sempre comigo. Eu posso deixá-las fisicamente, mas emocionalmente nunca desaparecem. Eu ainda me lembro dessa senhora que entrevistei no filme como se estivesse aqui sentada à minha frente. Mas ao mesmo tempo, eu também tenho uma vida. E, novamente, acho que o documentário deixa isso bem claro. É importante perceber que quem faz este trabalho são pessoas normais que têm as suas vidas, as suas famílias e as suas alegrias de viver. Uma das obrigações que tento ter com os meus filhos, por exemplo, é não trazer a parte má do meu trabalho para casa. É inevitável que eles não fiquem a saber mais do que uma criança normal, em relação ao que se passa lá fora, mas é importante para mim que eles tenham uma infância normal e com alegria ao invés de verem uma mãe traumatizada com as experiências do seu trabalho.

Numa sociedade em que nos é constantemente dito que as mulheres têm que estar muito presentes nas vidas dos filhos, como vive a maternidade na sua profissão?

Na parte prática, é tudo uma questão de logística. Tenho que ser organizada e garantir que tudo corre como o esperado. Mas claro que já questionei se estou ou não presente na vida deles, mas como não estamos sempre em casa, acabamos por aproveitar o tempo ao máximo quando estamos. Cada noite com eles é importante e cada fim-de-semana também. E, pela perspetiva que tenho com o Daniel [filho mais velho], é isto que eles se vão lembrar e que os vai moldar enquanto indivíduos. A minha própria mãe dizia "a felicidade é simples. É quando de manhã vamos felizes para o trabalho e à noite voltamos felizes para casa". E é tão simples quanto isso. Quando estou fora sinto a falta deles, mas ao mesmo tempo há outras tantas coisas com as quais eu me preocupo e isso dá-me um sentimento de concretização saber que os deixo em casa e que estão bem e que três dias depois volto, sentindo-me feliz por deixar qualquer trabalho onde estava e por estar com eles.

Seja pelos seus filhos ou por outro fator, existiu algum momento em que achou que estava na hora de parar com as suas missões?

Sempre que assisto a uma performance de tango, eu pergunto-me porque é que não sou dançarina (risos). Eu estou a brincar, mas a verdade é que sempre que tenho a oportunidade de dançar, penso "se calhar até podia fazer isto para o resto da vida", mas depois penso que nunca me daria o mesmo nível de satisfação. A resposta à pergunta é não. Eu nunca tive a sensação que devia parar porque não há nada que se compare ao sentimento de fazer parte de um movimento vanguardista na História e de a poder influenciar. Acho que é um grande privilégio e não trocava por nada. Mas claro que há momentos em que nos sentimos frustrados e cansados e precisamos de parar por uma semana ou por um mês. Estamos expostos a sofrimento e sabemos que há pouco que possamos fazer para ajudar, e isso cria, como um colega meu diz, uma "lesão moral". Embora eu nunca tenha tido vontade de parar de vez, tento saber dizer não a uma determinada viagem ou tirar uns dias de folga.

Relativamente às limitações face ao que ouve e ao pouco que pode fazer para ajudar, considera que é a parte má do seu trabalho?

Eu diria que é a pior parte emocionalmente. Quando ouvimos uma mãe que diz que perdeu cinco elementos da sua família porque foram mortos, sentimo-nos aterrorizados, mas impotentes, porque infelizmente ainda não existe o poder de trazer as pessoas de volta e essa é a grande limitação. Mas é nos momentos em que achamos que não há muito a fazer que são as nossas testemunhas que nos dão uma saída. São elas que dizem "Eu sei que não há nada que possamos fazer para trazer o meu filho de volta, mas ouve a minha história e partilha-a com o mundo para evitar que outras mães percam os seus filhos e para que se faça justiça". Não são as minhas palavras, é o que costumo ouvir. É incrível o nível de coragem que se vê nas pessoas que esperávamos ver completamente destroçadas pelas circunstâncias das suas vidas. Essa é uma das razões pelo qual eu nunca vou querer parar este trabalho. As lições que aprendemos em como viver a nossa vida faz com que valha a pena.

Muitas pessoas são solidárias a estas causas, mas nem todas estariam dispostas a correr os riscos que corre. O que a motivou no início e o que a continua a motivar?

Respondendo à primeira parte da pergunta, há muitas pessoas que tentam apoiar esta causa, mas de formas diferentes. Nomeadamente, dando dinheiro à Amnistia, participando em ações da Amnistia pelo mundo fora ou como membros que apoiam, mesmo não indo para estes países. São estas pessoas que tornam o meu trabalho possível. Em relação ao que me conduziu até aqui, talvez esteja relacionado com a forma como eu cresci. Eu nasci num estado totalitário e vi-o desmoronar-se, e isso deu-me um sentido de como poderia ser entusiasmante fazer parte de uma mudança histórica, mas também como a mudança é possível. E se eu não tivesse isto em mente, seria impossível continuar. Em termos de motivação contínua, eu não gosto que os vilões vençam (risos) e há uma certa emoção nisto. Há uma competição desnivelada porque eles têm tropas e mecanismos de propaganda e eu só tenho o meu papel e caneta. Mas apesar das diferenças, às vezes ganhamos. E claro, a outra parte que me motiva são as lições e a coragem das pessoas em campo. Eu não trocaria nada e sinto-me privilegiada por lidar com pessoas que transformam a tragédia em vontade de ajudar os outros ou para pedir justiça. Isto é forte. É isto que lemos nos livros quando somos novos sobre heróis, e vê-los na vida real é algo muito motivante.

Mónica Silva By Mónica Silva

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