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Solitaire, parte II

14 Feb 2018
By José Couto Nogueira, de 71 anos.

Viver sozinha(o) é uma opção ou um azar? As opiniões dividem-se, mas, hoje, quase vinte anos no século XXI, dividem-se em proporções diferentes do século passado. Têm a ver com a idade e com o género. 

"Nunca houve geração tão sozinha", diz-se, agora, como se dizia há cinquenta anos. Mudam-se os tempos, mantêm-se as vontades de estar só no meio da multidão? A Vogue baralhou as cartas e deu-as a dois jornalistas, Beatriz Silva e José Couto Nogueira, e à designer gráfica e ilustradora Wasted Rita, pseudónimo para Rita Gomes. Esta é a sua de definição de solidão.*

Os jovens de hoje são independentes e autossuficientes, é o que se diz. E os mais velhos preferem o apoio de uma companhia, ouve-se dizer. Será verdade? Quando eu era novo, o que já foi há muito tempo, toda a gente vivia com alguém. Quando não eram casados, os filhos estavam em casa dos pais, e os viúvos, avôs ou avós, instalavam-se em casa daqueles filhos que tinham criado. Havia umas tias solteironas, muito poucas e consideradas por todos como umas infelizes, coitadas. Ninguém se divorciava; era mais aceite que um homem tivesse duas casas do que acabasse com uma para começar outra. As mulheres, então, não se atreviam a deixar a proteção do marido, cruel e infiel que fosse. As relações começavam, mas nunca mais acabavam; até os separados mantinham contacto, mesmo que litigioso. Estas situações, hoje, parecem medievais, mas não estão a grande distância no passado, basta recuar uns cinquenta anos.

As casas eram grandes, herdadas na família ou com rendas baratas, havia sempre espaço para um familiar desgarrado a precisar de apoio, material ou moral. A solidão era considerada um drama, um azar, algo que só acontecia pelas voltas cruéis da vida madrasta. Lembro-me de que a minha mãe tinha duas amigas, irmãs, uma viúva e a outra solteira, que juntaram na mesma casa sombria as suas infelicidades diferentes. Quando uma morreu, a outra foi logo a seguir. Havia uma tia, divorciada, que tinha estudado em Paris e, por isso, era mais modernaça, até trabalhava e era independente. Um caso inusitado, surreal, comentado à boca pequena. E um primo, engenheiro e sempre com “noivas”, que vivia com os pais, ou por preguiça, ou porque achava que eles estavam velhotes, precisavam de apoio. Dezenas, centenas de histórias, todas com o mesmo pressuposto afetivo: viver só era a solidão, o desamor, o destino cruel. Havia mais viúvas do que viúvos porque eles iam para o atrito do trabalho(!) diariamente, desgastavam-se mais depressa, viviam menos. Mais uma vez, parecem histórias antigas, dos dramas morais e sociais do século XIX, quando na realidade não são tão velhas assim. Ainda há anciãos solitários, velhinhas secas a espreitar pelas janelas à cata da vida na rua, mas são restos de um mundo que está a desaparecer rapidamente. A solidão é um estado mental. A sensação de que não se tem ninguém para conversar, para dar uma ajuda em caso de emergência, para oferecer o ombro compreensivo à lágrima furtiva. Não acabou, não acabará nunca, porque somos como os macacos e outros animais, gostamos de companhia, tanto para rir, como para chorar, mas, cada vez mais, a solidão é apenas um sentimento passageiro, que vai e vem, e que se sacode com um encolher de ombros ou um shot de tequilla. Porque quem vive sozinho decidiu viver sozinho. Não é solitário, é independente. Prefere a autossuficiência material e afetiva à dependência emocional. Tudo tem um preço, mas vale a pena pagá-lo. Não há nada como chegar a casa — a uma casa só nossa — e estar à vontade, fazer o que se quer, deitar-se no sofá a ver televisão e jantar num tabuleiro às duas da manhã, sem dar satisfações a ninguém. Adormecer com a cara pintada de verde e acordar atravessada(o) na cama. Deixar a tampa da sanita levantada e as cuecas na sala. Fumar constantemente, pôr o cigarro aceso na borda da mesa e deixar cair a cinza no tapete. Claro que viver sozinha(o) não implica javardice e desmazelo. Há quem faça um esforço constante de se comportar civilizadamente mesmo quando ninguém está a ver, mas é porque se quer, não porque se vai enfrentar um comentário desagradável. E a liberdade de não ouvir perguntar “de onde vens” ou “para onde vais”, mesmo que se venha do trabalho de sempre e se vá à pastelaria do costume? E, depois,  a um nível mais profundo, a necessidade de se adaptar ao outro e de se tornar aceitável para ele. Uma relação, por mais harmoniosa que seja, implica cedências, compromissos. Aceitar os mesmos filmes, tolerar os mesmos programas de televisão. A independência é um valor inestimável.

Tirando as obrigações e relações familiares, o motivo porque duas pessoas decidem viver juntas continua a ser o mesmo: amor. Ora o amor de agora é o sentimento que era há cinquenta anos, ou há quinhentos, ou há 5 mil. Seja nas cavernas, seja num T2 em Odivelas, o que dois seres que se amam querem é viver juntos. Acordar na mesma cama, usar os mesmos talheres, escolher de comum acordo onde passar o fim de semana. É instintivo, é intenso e é maravilhoso; mas o amor, convém que se perceba, é um sentimento egoísta. O que mais preenche o ser de felicidade não é ser amado, mas que o outro se deixe amar. Pode ser recíproco — o paraíso! —, mas pode não ser. O outro até talvez não sinta ou exiba o mesmo entusiasmo, mas, desde que acolha o nosso, já é suficiente para a maioria das pessoas. Ou seja, eu quero amar o outro à vontade. Daqui podem inferir-se duas situações. Não é preciso viver juntos, todas as horas, ou mesmo todos os dias, para que o amor fluía. Há mesmo quem opine, e esta é uma constatação relativamente recente, que as separações, maiores ou menores, aguçam o desejo. Só se pode sentir saudade, essa componente deliciosamente masoquista do amor, quando o ser amado não está presente. O dia inteiro a pensar que o encontro será à noite. Ou a semana a pensar no sábado e no domingo. Quanto mais espaçados os encontros, maiores as descargas hormonais! Por outro lado, a rotina da convivência contínua, com os seus pormenores pouco sensuais, provoca um desgaste nas delícias partilhadas. Uma coisa é vê-la só quando está toda pinoca, com o batom fulgurante, outra é apanhá-la despenteada e de roupão de flanela com Snoopys impressos. A excitação está em encontrá-lo de barba feita e água de colónia Armani, não em apanhar-lhe as cuecas do chão. A geração a que pertencemos, romântica mas pragmática, já percebeu que a independência, materializada em espaços separados, é mais afrodisíaca do que a partilha da casa de banho. Pode ser-se independente e não se estar só. E a solidão é que é uma espécie de dependência de um ausente indefinido.  Se o que precisamos é de amar outro, esse outro não podemos ser nós próprios? O grupo brasileiro de rock Ultraje a Rigor já em 1985 entreviu essa possibilidade: “Eu era tudo o que podia querer./Eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim!” Cada vez mais há pessoas, homens e mulheres, que descobriram esse autoamor. Não se trata de não querer envolver-se com ninguém para não sofrer nenhum desgosto, como acontece com tanta gente. Trata-se de se envolver consigo próprio, realizando assim o sentimento e o objeto desse sentimento na mesma pessoa, sem o perigo de uma desilusão. Se acha que esta atitude é uma “piração” pouco comum, própria de mentes desvairadas, desengane-se. Trata-se de uma tendência reconhecida oficialmente em vários países e que até tem um nome: “sologamia”. Há empresas especializadas em organizar este tipo de consórcio em que a pessoa se casa consigo própria. Organizam a cerimónia, o copo de água e as viagens de núpcias. Se não acredita, veja no Google: sologamy. Se acredita, e até acha um conceito “descansativo”, que evita canseiras e divórcios litigiosos, contacte um desses empreendimentos precursores. Ou organize você mesmo. Os seus amigos não deixarão de comparecer e dar-lhe muitos presentes para a casa nova! Não se pode falar de solidão sem uma referência ao Facebook e similares. Há quem diga que as redes sociais são um sinal inequívoco da solidão que assola a nossa sociedade. As pessoas não têm amigos nem vida social e ficam fechadas em casa a conversar com perfis que não conhecem de lado nenhum. Esta afirmação parte do princípio de que a solidão é o motor dos contactos nas redes, o que pode ser verdade em certos casos, mas não será na maioria. E conclui que as “amizades” nas redes não compensam essa solidão, o que também não é exatamente verdade. Conheço muita gente, eu, inclusive, que tem uma vida social ativa e também uma vida virtual. Por um lado, as redes permitem que tenhamos um contacto mais permanente com os nossos amigos reais; por outro, levam-nos a contactos virtuais muito interessantes que podem converter-se em reais. Finalmente, são uma janela aberta para o mundo; sabendo escolher os contactos, consegue-se um manancial de informação que seria impossível através da comunicação social, ou aderindo a um clube, ou qualquer outra atividade. Não, a solidão não é um “mal” desta época; sempre existiu e até é mais fácil de evitar nos tempos que correm. Se as tais velhinhas que ficam a espreitar à janela se ligassem às redes, seriam muito menos solitárias. A afirmação contrária é que é verdadeira: a independência é um “bem” dos nossos tempos. As mulheres, as minorias, os desprivilegiados ou incómodos do antigamente, quando os preconceitos impediam quase tudo, agora, podem adquirir, através de inúmeras oportunidades que não existiam ou não eram possíveis, uma independência inigualável.

Artigo originalmente publicado na Vogue Portugal de dezembro 2017.

José Couto Nogueira, de 71 anos. By José Couto Nogueira, de 71 anos.

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